O Avesso da Pele
Qual a extensão da perda de um pai na história de um filho? O que fazer com a dor, ou melhor, como contá-la para poder seguir? Em “O avesso da pele”, Pedro perde seu pai e, diante da dor, escolhe refazer o caminho paterno como uma forma de continuar. Pedro entra na casa de Henrique e encontra ali o espaço e os objetos para que essa história seja contada, como ele mesmo coloca: “Em silêncio, esses mesmos objetos me contam sobre você. É com eles que te invento e te recupero.”
A noção de circularidade é uma força na narrativa. Pedro só existe porque existiu Henrique e remontar esse antes é uma forma de poder vivenciar o depois. Somos atravessados pela subjetividade de Henrique, mas também pela sociedade que somos, pela violência e pelo silêncio que fazem parte do cotidiano, e pelo racismo estrutural, que está narrado em detalhes. E Pedro caminha justamente nos detalhes da vida de seu pai.
O que se constrói é o caminho dos afetos, esses que circulam dentro, no avesso, e que podem produzir fora, na pele, inúmeros eventos: desde encontros potentes, como entre um professor com sua paixão pelos livros e seus alunos, até os mais violentos, como entre um policial e um homem negro no Brasil.
Jeferson Tenório não apenas nos dá acesso ao avesso dos personagens, mas também da sociedade que somos. E se no avesso de Henrique podemos ver a potência de tudo o que poderia ter sido, no avesso da sociedade vemos tudo o que é e tudo aquilo que precisa urgentemente ser transformado.
Os livros como personagem
Muito da potência de Henrique está na sua paixão pelos livros. Logo nas primeiras linhas, Pedro coloca o papel dos livros no centro da existência de seu pai:
“Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas.”
E quando eu li “até o fim”, o que ficou claro é que a narrativa daria um lugar prestigioso aos livros, pois não havia como existir um personagem que até o fim acredita nos livros e esse livro não ser um tributo de amor aos livros e à educação como possibilidade de atravessamento. No decorrer da narrativa, os livros dão contorno para a relação pai e filho, assim como para a questão da formação de identidade dos personagens e questões amorosas. É como se pelos livros fossemos acompanhando o desenrolar daquelas vidas. E não é assim que sentimos os livros? Os livros como caminhos para que a gente possa seguir! Separei abaixo mais um trecho que me trouxe um sorriso durante a leitura: um momento em que Pedro pede ajuda nos assuntos de amor. A resposta de Henrique, o que ele aponta, o que enlaça de afeto para esse filho e como coloca o livro como caminho, me emocionaram muito:
” (…) pai, como a gente sabe se alguém que está próximo de nós quer amizade ou algo mais? Lembro que você me olhou e depois sorriu. Ora, isso é fácil, Pedro: pergunte para a pessoa. Nós rimos. Deveria ser fácil, você continuou, mas eu sei que não é. Em seguida, você terminou de tomar um copo de coca-cola e disse: pelo jeito que você fala dela, a Saharienne é uma guria inteligente, então creio que é por aí que você vai fisgá-la. Você já leu O jogo da amarelinha, do Cortázar? Não precisa ler tudo. Comece pelo capítulo 7. Depois dê para ela. Você diz comprar o livro?, perguntei. Não, comprar não, ele disse. Não agora, isso soaria impessoal. Eu te empresto e você copia o capítulo à mão, numa folha, e depois dá para ela. Ela vai entender. Fiquei desconfiado, com um conselho daqueles. Mas você era o meu pai e, de certa forma, conhecia a vida mais do que eu. Fomos para o teu apartamento e você me emprestou o livro. Depois de ler o primeiro parágrafo, não sabia o que pensar. Eu disse que a literatura me fez chorar duas ou três vezes. Essa foi uma delas. Resoluto, peguei uma folha pautada e comecei a copiar o capítulo para Saharienne. Iria entregar para ela naquela mesma noite.”
Adoraria apontar todos os momentos em que um livro foi caminho na narrativa, mas talvez isso fizesse com que a experiência de leitura de quem ainda não teve o prazer de ler “O avesso da pele” fosse prejudicada. Isso porque a força da literatura está na revelação, naquilo que a escrita opera. Mas destaco apenas mais dois, e são trechos sobre o livro “Crime e castigo”, de Dostoiévski, que acompanha o personagem até o fim e que nos mostra também a precisão de escolha do autor, já que as obras citadas não são acessórios, elas constroem juntas a narrativa de Pedro e Henrique:
“Um dia você ouviu o professor Oliveira falar sobre um livro, sobre um certo personagem russo, Raskólnikov. E foi como uma iluminação ouvir o professor lendo aquelas páginas de Crime e castigo. Você não sabia que aquele seria um livro que te acompanharia até o fim de sua vida.”
“Então você releu Crime e castigo em casa, selecionou as partes que julgou mais contundentes. Tirou uma cópia. E, depois de reler, você se pôs a memorizar os trechos. Fez isso porque você não podia simplesmente ler o texto com eles, você tinha de contar algumas passagens. Dizer algumas palavras com mais ênfase, fazer as pausas necessárias. Deixar o silêncio falar por si. Afagar o léxico. Olhá-los nos olhos. E realmente parecia que estava funcionando. A descrição de Dostoiévski os hipnotizava. Entre a narração de uma morte e outra, podia-se ouvir a respiração dos alunos. Teu cansaço havia sumido, e uma nova sensação de plenitude começava a tomar conta de você.”
E é justamente o que mais a leitura tem feito comigo ultimamente, me tirado da exaustão dos nossos tempos e me permitido apostar ainda mais nos livros. : )
“Trilogia do abandono” – Jeferson Tenório:
Outros Caminhos