O hábito de pensar e sentir

Em janeiro de 2014 eu estava muito animada e super comprometida com o desafio de ler um livro de ficção por semana. Me sentia feliz e de bem comigo por ter determinado algo que no fim só traria ganhos e confesso que os primeiros meses foram muito prazerosos. Já tinha escolhido os livros, as leituras estavam em dia, já sentia até uma melhora na concentração nos meus estudos, tudo estava indo muito bem. Mas, o tempo passou e a vida pode nos atropelar, né? Os horários começaram a apertar e os momentos de esperas muitas vezes passaram a ser ocupados para ajeitar a agenda, mudar horários e compromissos, ou ainda para me alimentar. E aquele começo onde a espera era ocupada pela leitura, ganhou concorrência.

 

Mas, o mais curioso era o que eu escutava de várias pessoas próximas quando comentava que estava mais difícil manter a meta: “para você vai ser fácil, você sempre leu muito”. Eu não sei bem qual era a intenção do outro ao me dizer isso, mas depois do primeiro mês, o processo de manter as leituras nem sempre foi fácil. E comecei a repensar o meu processo, o que era de fato hábito? E obrigação? Tem hábitos que são obrigatórios ou ao menos recomendados, como tomar banho todo dia, comer todo dia. Mas, também há eventos que são frequentes, mais por gosto do que imposição, como ir ao cinema ou a uma exposição. Enfim, a leitura era uma constante na minha vida, até pela profissão que escolhi, pois precisava estudar sempre, mas meu desafio tratava de ler ficção. Era para ser outro tipo de ocupação, mas será que se tornaria uma coisa mandatória?

 

Hoje me dou conta que meu conflito da época estava justamente na falta de descansos. No início do desafio, eu estava descansada das férias e logo mais a vida hiperativa tinha ganho velocidade e a leitura passou a ser mais uma tarefa a ser cumprida. Como brilhantemente apontou Byung-Chul Han no livro “Sociedade do cansaço”, nossa sociedade perdeu o espaço de descanso, o encontro com o tédio:

 

“Os desempenhos culturais da humanidade, dos quais faz parte também a filosofia, devem-se a uma atenção profunda, contemplativa. A cultura pressupõe um ambiente onde seja possível uma atenção profunda. Essa atenção profunda é cada vez mais deslocada por uma forma de atenção bem distinta, a hiperatenção (hyperattention). Essa atenção dispersa se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos. E visto que ele tem uma tolerância bem pequena para o tédio, também não admite aquele tédio profundo que não deixa de ser importante para um processo criativo. Walter Benjamin chama a esse tédio profundo de um “pássaro onírico, que choca o ovo da experiência”. Se o sono perfaz o ponto alto do descanso físico, o tédio profundo constitui o ponto alto do descanso espiritual. Pura inquietação não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente. Benjamin lamenta que esse ninho de descanso e de repouso do pássaro onírico está desaparecendo cada vez mais na modernidade. Não se ‘tece mais e não se fia’. O tédio seria um ‘pano cinza quente, forrado por dentro com o mais incandescente e o mais colorido revestimento de seda que já existiu’ e no qual ‘nos enrolamos quando sonhamos’. Nos ‘arabescos de seu revestimento estaríamos em casa’. Com o desaparecimento do descanso, teriam se perdido os ‘dons do escutar espreitando’ e desapareceria a ‘comunidade dos espreitadores’. Nossa comunidade ativa é diametralmente oposta àquela. O ‘dom de escutar espreitando’ radica-se precisamente na capacidade para a atenção profunda, contemplativa, à qual o ego hiperativo não tem acesso.”

 

Lembro que diante dessas reflexões escolhi um livro bem curto para a semana seguinte, para que eu pudesse descansar, esvaziar um pouco e ter mais consciência do que a leitura de literatura seria para mim. Com a rotina mais pesada, precisei repensar o desafio, porque não queria que o hábito de ler ficção saísse da minha vida e tampouco que virasse um peso. E está aí a minha ressalva com esses desafios de ler sei lá quantos livros por sei lá quanto tempo. Muitas vezes podemos transformar algo que deveria ser um respiro em um peso. Lembro que escolhi ler o livro: “Casa de boneca”, de Henrik Ibsen. É um daqueles livros pequenos, de 102 páginas apenas, e eu já tinha lido ele há muitos anos, então foi uma semana em que não havia ansiedade em cumprir a tarefa, mas também não havia ansiedade com a história, pois eu já sabia o que aconteceria. E foi nesse intervalo, com um livro que já tinha lido e que era curto, que eu me conectei de novo com o meu corpo e pude sentir aquela leitura. E, assim como Nora, a personagem principal, me libertei do que poderia ter virado uma obrigação, uma prisão.

 

Determinei algo sobre o que eu não negociaria no meu processo de leitura, que era a chance de pensar e sentir as narrativas. Nesse momento em que eu precisei repensar a leitura é que defini que a minha bússola sempre seria ligada às questões que o livro pode me trazer. Passei a anotar as citações, a pesquisar mais sobre o autor, procurar referências, a escrever pequenos parágrafos sobre o que pensava e sentia, o que me garantiu muitos temas na minha análise pessoal. Foi aí que iniciei a minha coleção de palavras! Sempre anoto as palavras que mais me ocupam na leitura. Enfim, foi em 2014 que entendi como eu leio, como era o meu processo. Portanto, o último pilar da Como Leio, sobre o pensar e o sentir, tem muito dessa reflexão vivida no corpo em 2014.

 

A Como Leio é um território de pensar e sentir, tem na sua essência o trabalho com as palavras, como meio de investigação, de pesquisa, de descobertas sobre o nosso modo de ser e de estar. Usando como suporte os livros e não tendo como objetivo ter respostas, mas sim aprendermos juntos a formular perguntas. O que eu percebi ao final de 2014? Que um livro nunca se fecha em si e esse é o maior aprendizado de todos. A questão é como se abrir para leituras, releituras, mudanças, sentimentos novos, velhos, um tempo vivido e sentido e não simplesmente gasto com um livro.

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