O que é que ele tem
Esse é um livro que nos mostra a vida vivida, não aquela idealizada e imaginada que só é possível quando a vida ainda não aconteceu. “O que é que ele tem” é um livro precioso, pois a escrita de Olivia Byington nos leva da vida sonhada, com apenas 22 anos, uma primeira gestação e todos as imagens e preparativos para esse momento inaugural, até a vida de fato experimentada na sua potência máxima. Quando recebe nos braços não seu filho imaginário, mas sim seu filho real que nasceu com uma síndrome chamada Apert. É um testemunho corajoso da sua jornada por um território desconhecido, sem preparação prévia, mas reagindo com coragem e construindo afetos pelo caminho. Tenho refletido que depois que nós vemos uma situação, não há como deixar de ver. E a forma como a gente lida com a diferença das pessoas me parece uma situação assim, ou seja, a gente nem sempre quer ver, muitas vezes finge que não vê e outras tantas temos atitudes deploráveis diante do diferente. Mas, acredito que quando a gente vê, não consegue fingir mais. E o livro da Olivia joga luz sobre uma questão fundamental: precisamos ver, ler, aprender, nos emocionar, escutar atentamente as pessoas que, como ela, experimentaram o processo na pele. Porque só assim, ao final do livro podemos transformar essa pergunta que ela escutou tantas vezes, (o que é que ele tem?) para “o que é que a gente tem”, qual é a nossa grande dificuldade em lidar com a diferença, ou melhor, com a vida?
A leitura do livro da Olivia nos oferece uma chance rara de acompanhar o processo que se inicia quando a diferença atropela a vida. Nesses casos, não há caminho pré definido. É um caminho que precisa ser percorrido. O processo começa naquele exato momento onde o imponderável se apresenta e que por alguns instantes parece que o ar falta. Só depois a gente percebe que o que falta é o entendimento que nem tudo tem uma explicação, que quase nada está garantido e que teremos que achar de forma singular a maneira para enfrentar a vida como ela é, e não como imaginamos.
As palavras de Olivia transbordam respeito ao próprio processo, ao do João e a de todos que compartilham esse caminho desconhecido. O João é apresentado pelo que ele conquistou, aprendeu, superou e ensinou. O significado da palavra inclusão na sua essência e potência. João compartilha a vida com os seus amores, família, preferências, suas limitações são olhadas com carinho e cuidado, mas nunca como definições. João tem seu próprio humor, seus segredos e seus silêncios preservados e isso é de uma beleza tamanha. No fim, você se emociona com o tanto de coragem e afeto que foi sendo plantado no caminho.
Olivia Byington
Olivia lançará em breve seu próximo livro, mas já podemos experimentar um pouco dessa sua nova aventura pela escrita por meio da Revista Gama, que publicou cinco contos dessa nova obra. A ideia é muito interessante: são 100 contos, cada um referente a uma idade diferente.
O meu olhar tardio para a diferença
A primeira vez que me dei conta o quanto eu era “cega” para as várias questões sobre as diferenças foi quando comecei a namorar o Gui (atualmente, meu marido). Ele me contou que tinha uma questão séria no olho e sabia a respeito de algumas limitações – como não poder dirigir, outras imaginava, mas saber é diferente de viver. E esse dia que vou relatar, foi quando eu tropecei nesse espaço entre uma coisa e outra. Ele me mandou uma mensagem me contando que tinha sido promovido, então, rapidamente eu falei, que ótimo, vamos sair para comemorar hoje, vou escolher um restaurante bem legal e nos encontramos a noite. Combinado? Combinado!
Pois bem, como uma pessoa completamente alienada ao tema de acessibilidade, escolhi um restaurante que na época estava badalado e fiz a reserve. A noite romântica/comemoração da promoção para mim virou um pesadelo. O restaurante era escuro, o cardápio era horroroso, uma fonte péssima, a cor pior ainda, enfim, pegamos o cardápio e percebi que ele estava com bastante dificuldade. Tentei disfarçar e comecei a perguntar o que ele estava com vontade de comer, para tentar localizar no cardápio algo e olha esse, que ótimo, pronto, escolhemos. Ufa. Era início do namoro, ainda não tínhamos tido essas conversas mais difíceis, na verdade, naquele momento que caiu a ficha que teríamos pela frente conversas difíceis. E sinceramente, naquele momento, achei que não saberia como agir. Mas, senti, naquela mesa do restaurante charmoso e completamente não acessível, uma tristeza profunda, pois ali, percebi que eu não tinha pensado, que eu não tinha dentro de mim as informações necessárias para escolhas básicas e que sim, tinha sido insensível as necessidades dele. Essa experiência me afetou profundamente. Ele como sempre, aparentemente tirou de letra, comemoramos a sua promoção e seguimos o namoro. Mas, eu, me lembro muito bem como foi minha noite em claro, me sentindo muito mal por ser tão alienada, por imaginar que ele se sentiu inadequado, quais os sentimentos que essas pequenas situações cotidianas podem causar? Quais os sentimentos que ele tinha? Seus medos? E, também suas coragens?
Enfim, ali começou o meu despertar para as diferenças e principalmente sobre os sentimentos que cada exclusão por mais insignificante que possa ser, produz, pois a mensagem que fica é que o mundo não se interessa em ser acessível. É como se o caminho já estivesse trilhado e se o seu não foi, o problema é todo seu, você que faça algo para se adaptar. E isso, é muito cruel, porque sabemos que as diferenças requerem investimentos, políticas públicas, informações, olhares e afetos. É necessário investimentos em vários aspectos. E por isso mesmo que esse livro me emocionou tanto, pois é um caminho muito difícil, claro que existem casos mais sérios que outros, e não cabe comparação mas a questão é que o caminho não está pronto e você não tem onde pisar. Cada passo é precedido por uma série de coisas que não se sabe muito bem o que será, vai desde informações necessárias para poder escolher melhor, como sentimentos que não são conhecidos e muitas vezes precisam ser nomeados para serem elaborados. Vai de adaptações espaciais a adaptações de comunicação, de olhar e de afeto. Não é simples. Mas, é a vida se impondo. É ela acontecendo.
Carla Paiva
Outros livros…
Longe da árvore – Andrew Solomon
O filho eterno – Cristovão Tezza
Não era você que eu esperava – Fabien Toulmé
Outros caminhos…
https://www.youtube.com/watch?v=1HAGuju_yKY