Pequena coreografia do adeus

 

“Pequena coreografia do adeus” é uma busca por um corpo (lugar). O livro começa com Júlia criança orbitando no universo (casamento) de seus pais. E logo pensei “qual o lugar dessa menina?” E de fato, essa questão me acompanhou durante todo o livro e em várias camadas, inclusive na estrutura da narrativa. Aline tem um estilo muito próprio de escrever. Seus livros sempre nos apontam para além da ação, dos personagens e nos levam para a criação de uma linguagem, de um livro-lugar. Esse livro, ainda mais que o anterior, me proporcionou isso, a construção de um lugar na própria escrita. Os tamanhos das palavras são diferentes, os colchetes e linhas são colocados e viram textos, os espaços entre as palavras não respeitam a norma, nos lembrando que o espaço entre uma mãe e uma filha também não. Forma e conteúdo se completam nessa dança para que Júlia possa construir um lugar para chamar de seu, sua própria linguagem. Durante a narrativa entramos em contato com o quanto pode ser difícil e devastador sair do primeiro lugar que habitamos – a mãe. E depois, o pai, que no caso da Júlia está sempre a deixando, ou seja, há o abandono como um lugar. Mas, apesar desses dois primeiros lugares (mãe e pai), vamos deslizando pelos lugares (refúgios) que Júlia vai experimentando e acabamos, como ela também, os habitando (o imaginário – o ballet – o café – o quarto da pensão – as esculturas – a escrita). E esse deslizar não é suave e tampouco tranquilo, é feito aos tropeços, no abismo que se abre entre o que querem da gente e aquilo que somos. É com dor e esforço que Júlia vai se afastando do que ela é para o outro e chegando mais perto de si. No fim, Júlia nos lembra que o nosso lugar é sempre aquele em que possamos dançar o próprio desejo.

“Repetir, repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo”.

 

Manoel de Barros

 

A repetição e o seu lugar

 

Aline escreve: “nas repetições é que se instalam os afetos cotidianos”. E essa frase me levou para duas práticas que foram muito importantes na minha formação – o ballet e a psicanálise. Acredito que as duas moldaram meu corpo, gestos, meu pensar e sentir. E nas duas práticas a repetição tem um lugar chave, tanto nas aulas de ballet, onde os movimentos são repetidos e repetidos, até você de fato encontrar eles no próprio corpo. Como na psicanálise, onde os sintomas são repetidos e repetidos, até você de fato elaborar o que precisa. Eu sinto a repetição como uma das formas em que o tempo se presentifica, é como se ela fosse uma forma de recortar o tempo e nos colocar a seu serviço.  A repetição é esse lugar onde a vida acontece (presente), mas também é revivida (passado) e imaginada (futuro). Para mim é quando os tempos estão todos juntos e podemos de fato transformar o movimento, o gesto, as ideia e os sentimentos. Repetição é a oportunidade de trabalho, de localização, de criação.

 

 

“A repetição envolve algo de que, por mais que se tente, não se consegue lembrar. O pensamento não consegue encontrá-lo: O que é isso? Isso é o que está excluído da cadeia significante, mas em torno de que cadeia gira. O analisando dá voltas e mais voltas numa tentativa de articular o que parece estar em questão, mas não consegue localizá-lo, a menos que o analista aponte o caminho. ” *

 

 

No livro, essas repetições aparecem de forma frequente, a repetição tem um lugar na narrativa. Nas reações da mãe de Júlia diante da vida e da filha, nas dores de Júlia que sempre a levam para o mesmo lugar, o pai e sua constância em não ser lugar, algumas palavras e sonhos que  se repetem. A repetição é que faz com que a pequena coreografia do adeus aconteça. Destaco dois sonhos que se repetem em momentos diferentes da vida de Júlia, mas que nos apontam para o conteúdo e para o lugar onde Júlia está enredada.

 

 

“naquela noite

me recusei a dormir na cama da dona Vera

no entanto sonhei

que me acontecia praticamente o mesmo. eu chegava

tarde e minha mãe me batia

a diferença é que no sonho o Chinelo tinha vida própria.

ele percorria todo o meu corpo por baixo da roupa

me fazendo sentir um prazer imensurável.

minha mãe ria de mim, dizendo: está gostando, hein? você está gostando!”

 

 

“sonhei que um desconhecido me cercava com madeiras,

pra me incendiar.

minha mãe estava presente

na sala

mas não movia

um dedo

você viria me salvar se eu fosse o Sérgio, gritei

ela me deu uma chinelada

na boca

que ardeu como se o meu rosto já estivesse em chamas.

então o Chinelo começou a percorrer

o meu corpo

me fazendo sentir um prazer

imensurável

a minha mãe ria, gargalhava”

 

 

* FINK, B. “A causa real da repetição “, in: Para ler o Seminário 11

 

 

 

 

Capa da “Pequena coreografia do adeus”:

États modifiés, 1992 – Louise Bourgeois

 

“Eu mexo minhas pernas, meus braços, meu polegar.

Estamos na linguagem do corpo. A pedra torna-se corpo.

O que acontece em meu corpo é repetido na pedra, salvo quando eu acrescento

uma significação formal”

 

Louise Bourgeois

 

Louise Bourgeois, uma vida que entrou para a história da arte.

 

 

 

 

Primeiro livro de Aline Bei:

 

O peso do pássaro morto 

 

Outras mães e filhas:

 

Meu nome é Lucy Barton – Elizabeth Strout

 

Uma duas – Eliane Brum            

 

Você é minha mãe? – Alison Bechdel

 

 

 

 

 

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