Tudo é rio
Acho muito potente e bonito quando o nome precede a experiência. “Tudo é rio” tem essa força. Traz no seu nome a forma como a narrativa foi construída, sendo o próprio rio a metáfora de tudo. E é nessa correnteza que somos levados a conhecer Dalva, Venâncio e Lucy e seguir os caminhos que esse encontro produz. A narrativa-rio nos leva para mergulhos profundos em cada um dos personagens, mas, mais ainda, nos sentimentos. É uma enxurrada de possibilidades sobre o sentir – amor, raiva, dor, loucura, desejo, decepção, estamos diante da complexidade humana sem nenhuma tentativa de soluções simplórias. O amor é posto na narrativa com tudo que ele contém, sua parte luminosa e solidária, mas também suas sombras e os buracos que pode produzir. Não há lugar para o amor idealizado nessa história, porque esse rio nos leva ao amor vivido, experimentado, que marca o corpo e exige de nós. Nesse lugar da explosão de sentimentos é que as escolhas, os gestos e os silêncios são feitos dentro do que é possível para cada um. A dimensão do possível é que faz com que esse livro seja tão singular, pois é dentro do que é possível que os sentimentos são experimentados e que a vida deságua.
O lugar da palavra
Uma das coisas que mais me chamou atenção na minha experiência de leitura do “Tudo é rio” foi a escolha das palavras. A sensação que me deu é que as palavras foram colocadas uma a uma para formar esse efeito de correnteza na narrativa. Não há palavras que sobrem e nem que faltem, parece que cada uma está ali produzindo o que a trama pediu. E acho que esse trabalho com as palavras é primoroso e fundamental, pois acredito muito que as palavras criam. Sempre no meu trabalho de escuta, como psicanalista, as perguntas: como você se sentiu com isso? Ou o que você pensou? eram corriqueiras e nos localizavam naquela narrativa que estava sendo produzida no momento. Sobre o papel das palavras na nossa construção subjetiva, o professor de filosofia da educação espanhol Jorge Larrosa Bondía nos fala:
“E isto a partir da convicção de que as palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras.”*
E pedindo uma licença poética, incluo o sentir também. Sentimos no corpo, mas quando precisamos narrar esse sentir, é com as palavras que o fazemos. A descrição sobre aquela dor profunda que nos toma pode encontrar nas palavras: buraco, vazio, peso ou um rasgo, o sentido do que está acontecendo no corpo. “Tudo é rio” é um livro que nos oferece palavras possíveis para chegar perto dessa profundidade e complexidade que é o ato de sentir.
* Notas sobre a experiência e o saber de experiência – Jorge Larrosa Bondía
O RIO
Ser como um rio que flui
Silencioso no meio da noite
Não temer as trevas da noite
Se há estrelas no céu, refleti-las.
E se o céu se enche de nuvens
Como o rio, as nuvens são água;
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.
Manuel Bandeira
Outros caminhos…